Na página 29 da Gazeta da Beira de 13 de Dezembro o Ex mo. Senhor Juiz Conselheiro Mário Magalhães Araújo Ribeiro dirigiu-me algumas perguntas sobre os comboios TGV e apresentou uma sugestão relacionada com a linha de Lisboa para o Porto. Sem a pretensão de encerrar o assunto, e desejando pelo contrário que outros o continuem, respondo com agrado às questões postas, cruciais para o país e muito em particular para a Beira Alta.
1- O problema central (e actual) dos nossos Caminhos de Ferro não é o da urgência em termos comboios de alta velocidade TGV (ou CGV) nem mesmo o da saturação de algumas linhas, mas sim o da mudança da bitola a que somos obrigados por a Espanha a estar fazer aceleradamente.
2- As duas redes de bitola ibérica e europeia (“standard”) com materiais circulantes diferentes terão de coexistir no nosso país durante talvez duas ou três décadas. No futuro, daqui a trinta ou quarenta anos, só teremos comboios de bitola europeia mas, de momento, temos de criar a segunda rede mantendo a primeira em funcionamento. (A solução dos comboios que podem mudar o afastamento das rodas em estações com intercambiadores, só possível para comboios de passageiros e não de mercadorias, é uma solução a por de lado, a só usar, eventualmente, em casos muito particulares).
3-As linhas de bitola europeia do Pinhal Novo e do Poceirão (na Península de Setúbal) até Badajoz, e de Aveiro a Vilar Formoso (esta com estações perto de Viseu e da Guarda) são, manifestamente, as nossas grandes prioridades, não tanto por causa do problema dos passageiros, mas, sobretudo, por causa das mercadorias.
4-A linha para Badajoz é fundamental para o trânsito das mercadorias de todo o Sul do país, em particular da península de Setúbal, para a Europa. Tudo leva a crer que a sua construção venha a ser decidida na Cimeira Ibérica de 2007 (adiada para Janeiro ou Fevereiro de 2008). Esta linha que deve deve servir para os futuros comboios TGV de Lisboa a Madrid, deve ser projectada com características semelhantes às da linha de Badajoz a Madrid, ou seja, para permitir o trânsito de comboios de alta velocidade o que, dada a natureza plana do Alentejo, nem sequer a encarece muito.
5-A linha de Aveiro a Vilar Formoso de bitola europeia é igualmente fundamental para o trânsito das mercadorias de todo o Norte para a Europa, e para o escoamento pelo porto de Aveiro dos produtos da Castela espanhola. Infelizmente, poucos se têm batido por ela e assistimos ao pedido verdadeiramente descabido da construção de um ramal de Alcafache a Viseu, término de uma linha bitola ibérica de Lisboa a Viseu, que nenhum governo com um mínimo de competência e bom senso aceitará construir.
6-Dado o acidentado da região, a linha de Aveiro a Vilar Formoso não será destinada a comboios TGV, mas sim a comboios com uma velocidade máxima , talvez, de 220 km/h. Os autarcas de Viseu, aparentemente, ainda não se aperceberam das potencialidades imensas que esta linha trará à região. As suas preocupações, neste momento, deviam ser a de lutar para a sua construção ser decidida o mais brevemente possível, eventualmente, na Cimeira Ibérica 2009 e, simultaneamente, começar a pensar se a linha deve passar a Norte ou a Sul de Viseu. São questões em que o a Imprensa regional pode ter um papel importantíssimo.
7-Na linha de Vilar Formoso a Salamanca, os espanhóis optaram pela solução de rectificar as curvas e de alargar a plataforma para duas vias, uma para comboios de bitola europeia e outra para comboios de bitola ibérica, que circularão nos dois sentidos. Os estudos estão feitos há mais de dois anos. Daqui a umas décadas, quando a linha de bitola ibérica passar a europeia, ficarão com a linha dupla de bitola europeia. No nosso território, dado o acidentado do terreno, não podemos proceder do mesmo modo. Temos de manter a linha da Beira Alta em funcionamento tal como está durante mais uma décadas e construir de raiz, com um traçado conveniente, uma linha de Aveiro a Vilar Formoso com uma plataforma para duas vias, podendo no início construir só uma , mas ficando com espaço para a segunda. É uma obra que tem custos mas não extraordinários. É ridículo um país não ser capaz de fazer uma linha de caminho de ferro de 200 km fundamental para o seu futuro, sobretudo numa altura em que tem créditos internacionais para o ajudar.
9-A linha de Lisboa ao Porto não é uma prioridade. A solução sugerida pelo Conselheiro Magalhães Ribeiro não é indicada porque manteria a solução ibérica, porque o pior que há em Caminhos de Ferro é modernizar uma linha em funcionamento, e porque os problemas difíceis são perto de Lisboa e do Porto, exactamente onde é mais complicado e caro duplicar a linha. Não vou aqui falar dos problemas perto de Lisboa, que têm de ser conjugados com o problema da travessia ferroviária do Tejo que, a meu ver, não é também uma obra prioritária , pelo menos prioritária em relação à linha de Aveiro a Vilar Formoso.
10-Mas, no que diz respeito ao Norte, o que tenho sugerido é que se comece a estudar e construa imediatamente a seguir à linha de Vilar Formoso a Aveiro um troço de bitola europeia de Aveiro ao Porto, integrável na futura linha TGV de Lisboa ao Porto, a construir bastante mais tarde. Este troço pode ter uma importância imensa para o tráfego ferroviário do Norte: liga o Norte à rede europeia de Caminhos de Ferro; pode servir para muitos comboios diários de acesso ao Porto vindos das zonas a Sul; fará com que as pessoas se reabituem a viajar de comboio do Porto para Viseu e para a Guarda. Temos de ter presente que as linhas de bitola europeia são importantes para as nossas ligações ao exterior mas serão, também, e para isso devem ser pensadas, as linhas do futuro tráfego ferroviário interior.
Nota adicional:
Se um dia voltasse a dar aulas, gostaria de me encarregar de uma cadeira de Transportes no Instituto Politécnico de Viseu. No primeiro dia, dividia os estudantes em dois grupos e dizia-lhes: “Vamos tirar à sorte. Um grupo vai estudar a passagem da futura linha de bitola europeia a Norte de Viseu e outro a Sul . São vocês que têm de procurar e reunir toda a informação. Têm de dominar as técnicas de informação geográfica, de visitar o terreno, de buscar informações técnicas, históricas e económicas, de fazer entrevistas. Devem estudar soluções encontradas noutros países e debruçar-se sobre o problema de como é que as sociedades tomam decisões neste tipo de problemas. Devem debruçar-se sobre os custos , o impacto ambiental e discutir a influência sobre o desenvolvimento. Devem habituar-se a apresentar soluções (mesmo que ingénuas) a defende-las e a critica-las (as vossas e a dos outros outros). Devem ousar fazer programas de computador (no início rudimentares) de apoio ao traçado de vias ferroviárias na vizinhança de cidades. No final do semestre, devem ter dois dossiers para enviar ao Ministério e aos políticos e ás forças vivas da região. Eu limitar-me-ei a dar-vos sugestões, a fazer críticas e dar-vos algum auxílio quando solicitado. Farei como os antigos assistentes de Desenho do Técnico, que passeavam entre os estudantes quando eles desenhavam.
António Brotas, Professor Jubilado do IST
PS – Envio este texto à Gazeta da Beira, de São Pedro do Sul e a vários outros jornais. Terei gosto se sobretudo na Beira e no Centro despertar interesse para os assuntos referidos .