sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Reflecções Sobre o TGV

Mário Pinto Alves Fernandes Eng.º CivilChefe de Gabinete do Min. Obras Públicas, Transportes e Comunicações (1970/1972);Presidente da JAE (1987/1993)Director do GECAF (Gabinete de Gestão das Obras de Instalação do Caminho-de-Ferro na Ponte sobre o Tejo – 1993/1997)Vogal Cons. Admin. Refer (1997/2001)

1. A rede de caminhos-de-ferro em Portugal data da segunda metade do século XIX, e insere-se no planeamento das grandes vias de comunicação concebidas pelo pensamento de um grande ministro da monarquia, de seu nome António Maria Fontes Pereira de Melo. A sua evolução até hoje é conhecida, quer em termos de rede1, quer em termos de material circulante.
2. Portugal encara a construção de uma rede ferroviária de alta velocidade (TGV). Como precursores desta nova visão do transporte ferroviário, destacam-se os japoneses com o SHINKANSEN desde 1964 e os italianos com os célebres PENDOLINI (pendulares) que, em condições técnicas adequadas da infra-estrutura, conseguem atingir velocidades que se aproximam das atingidas pelo TGV.
No quadro europeu, a Inglaterra, que é a verdadeira pátria dos caminhos-de-ferro, ainda não passou da primeira fase da ligação ferroviária ao túnel do Canal da Mancha. Simultaneamente, a política europeia no sector dos transportes vai no sentido de assegurar a ligação das capitais dos países da União por uma rede de auto-estradas e uma rede ferroviária de alta velocidade, com a disposição de participar nos respectivos custos que são enormes, como se sabe.
3. E Portugal? País periférico que somos, no extremo mais ocidental da Europa, mas com a “virtude” de dispormos de uma frente atlântica, cujas potencialidades nos compete explorar, não poderíamos ficar indiferentes a esta evolução no mundo do transporte ferroviário. A questão é saber em que termos o devemos fazer. E a grande dúvida é ponderar a solução consentânea com a nossa dimensão e posição geográfica, sobretudo a nossa dimensão sócio-económica. O problema reduz-se a duas opções: uma rede nacional de alta velocidade e uma ligação em TGV à Europa (via Madrid) ou, segunda opção, apenas esta última e a modernização e reabilitação apropriada da rede existente, nos traçados mais pertinentes do ponto de vista técnico-económico.
4. Este magno problema possui já, segundo consta, um grande acervo de estudos, os quais têm vindo a desenvolver-se ao longo dos últimos anos, nas mais variadas áreas de especialização. Dir-se-á que tudo está estudado e não há necessidade de mais contribuições. Como me atrevo, então, a vir a terreiro e formular o meu ponto de vista? A informação de que disponho de várias origens, em geral constituída por artigos de opinião, não me deixa numa posição muito confortável à partida, já que não me são acessíveis os estudos técnicos e técnico-económicos produzidos. Resta a minha condição de cidadão. Quero dizer, por outras palavras, que ao assumir a ousadia de manifestar a minha opinião, não estou a fazer mais do que usar o “direito de cidadania”, na certeza de que me será reconhecido.
5. Há uma realidade a que não podemos fugir. Portugal é um país pequeno e os seus recursos são limitados. Com uma dimensão longitudinal máxima da ordem dos 900 km e uma dimensão transversal máxima que pouco ultrapassará os 200 km, podemos dizer - perdoe-se-me a boutade... - que o TGV não cabe cá dentro!... Repare-se: é na faixa ocidental desenvolvida (em termos económicos), que tem por limites o Porto (e mais uns quantos quilómetros para Norte) e Lisboa (e uns tantos, poucos, para Sul), que se poderá, eventualmente, pensar na viabilidade (?) do TGV, concebendo uma linha inteiramente nova. E não se esqueça a visão paroquial de alguns autarcas que venderiam a alma ao diabo para ter uma paragem do TGV à sua “porta”... Note-se que a distância entre Lisboa e Porto pouco ultrapassa os 300 km, distância, essa, que é, nem mais nem menos, igual à percorrida em 1 hora, pelo TGV, em velocidade de cruzeiro! Outro aspecto que não pode deixar de ser analisado, e não tenho dúvidas de que o foi nos estudos já feitos, é o do tráfego que se prevê. Será que o tráfego previsto - e um distinto dirigente da CP já o pôs em causa em declarações vindas a público na Comunicação Social escrita - é suficiente para garantir uma exploração rentável? Ou não iremos cair na repetição dos défices crónicos do sistema ferroviário? Ignoro se já está pensado o modelo de exploração do TGV, isto é, se será entregue à CP ou se dará lugar a uma nova concessionária. Não obstante, permito-me recordar que, ainda em Março passado, o “Semanário Económico” noticiou que as dívidas acumuladas da CP e da REFER, até 2004, eram de 2400 e 3600 milhões de Euros, respectivamente, num total de 6000 milhões de Euros, ou seja, cerca de 4% do PIB! Só em 2004 o prejuízo operacional da CP atingiu 170 milhões de Euros. E, segundo as estimativas (quase sempre excedidas pela realidade), o TGV, entre Lisboa e Porto, de acordo com o “Semanário Económico”, custaria 6,6 mil milhões de Euros, ou seja, um encargo da mesma ordem de grandeza do actual nível de endividamento. Por enquanto, só falamos da linha Lisboa – Porto.
Mas prevê-se uma rede de alta velocidade para Portugal!!! Justifica-se um projecto desta natureza, que implica um investimento astronómico, mesmo que se atenue o impacto da despesa, com a sua construção faseada? Tanto quanto sei - são números vindos a público pelo “Jornal de Negócios” - só as ligações Lisboa/Porto, Porto/Madrid e Porto/Vigo atingem, segundo estimativas da RAVE, 7,3 mil milhões de Euros, ou na nossa moeda tradicional, 1,5 mil milhões de contos. Ignoro os encargos que resultam da construção das restantes linhas previstas, na rede de alta velocidade, mas os números que acabámos de reproduzir dão que pensar e... quase nos assustam. Onde é que vamos buscar os fundos (mesmo, repito, considerando as eventuais ajudas comunitárias, mais problemáticas numa Europa a 25 do que numa Europa a 15) para fazer face a um investimento que ultrapassa a escala da nossa realidade económica? Com certeza que aquele elevado montante não surgiu por acaso. Ele foi, sem dúvida, o fruto de laboriosos e profundos estudos económicos que devem ter incluído previsões de tráfego compatíveis com o desenvolvimento da nossa economia, estudos económico-sociais, estudos de impacte ambiental, etc., etc., e, obviamente, análises de custo-benefício.
Mas não é disso que se trata e que nos merece o maior respeito pelos especialistas que o fizeram. Do que se trata é do interesse geral do país, do que nós somos e do que desejamos ser, sempre com os pés bem assentes na terra! A nosso ver, o país não carece de uma rede ferroviária de Alta Velocidade. Carece, sim, de uma rede de transportes rápidos, cómodos e seguros, afeiçoados à realidade do país. Algo que assegure a mobilidade e, em consequência, promova um bom nível de acessibilidades. Nem mais nem menos. Da rede sugerida, e a título de exemplo, destaco apenas a linha Porto/Vigo, com pouco mais de 100 km de extensão e cujo tráfego, no futuro, é uma incógnita. Não “sinto” que a ligação Porto/Vigo vá desencadear uma explosão do tráfego capaz de justificar a ligação e o investimento. Pesem embora as boas relações de vizinhança entre o Norte de Portugal e a Região Autónoma da Galiza, penso que o estabelecimento de uma linha de alta velocidade não é indispensável. Não é, sequer, necessária.
6. Ouve-se, com frequência, dizer, no contexto de uma mesquinha rivalidade ibérica, nos mais variados domínios, que “a Espanha tem...”, “a Espanha fez...”, “a Espanha aconteceu...”, “a Espanha consegue...” etc., etc.. Com todo o respeito por todos os que, de boa fé, assim pensam, não há, em nossa opinião, comparação mais insensata. Porque a Espanha é um grande país, com uma área e uma população que são, números redondos, cinco vezes a nossa, uma produtividade laboral que é dupla da nossa, e um PIB que é 5,5 vezes o de Portugal, que, por sua vez é, setenta e três por cento da média europeia, de acordo com as notícias publicadas na imprensa do dia 4 de Junho2. São factos concretos que não podemos escamotear, por mais que queiramos ombrear com “nuestros hermanos”. Pessoalmente, não somos, não queremos ser “velhos do Restelo”, e desejando embora o melhor para o nosso país e para a nossa gente, desejamo-lo “com conta, peso e medida”. Deitando uma olhadela a países que fazem contas e não desbaratam os recursos de que dispõem, detenhamo-nos um pouco sobre os países nórdicos3, deixando de parte a Europa central - o coração económico da Europa -, que constitui uma realidade específica, como todos sabemos, e que neste domínio da alta velocidade se vai consolidando com as linhas de Amesterdão para a Alemanha e da mesma cidade para Paris, já concluídas. Tanto na Dinamarca (43.000 Km2 de superfície e 5,4 milhões de habitantes), como na Noruega, Suécia e Finlândia, a primazia foi dada aos comboios pendulares. Na Dinamarca está em curso um plano de renovação das vias, de forma a permitir uma velocidade máxima de 200 km/h. Quanto à Suécia que é, como se sabe, o país com um dos mais elevados PIB da Europa e do mundo, as suas principais linhas são Estocolmo/Gotemburgo e Estocolmo/Malmöe. A primeira, com 456 km de extensão, é percorrida em 2h55 m, num percurso non-stop a 210 km/h, com comboios pendulares. A linha da capital para Malmöe é, ainda, parcialmente em via única, mas a sua duplicação, em curso, permitirá uma velocidade máxima de 250 km/h, com os mesmos pendulares. Um outro aspecto que não podemos ignorar é que no mesmo espaço – canal, em sentido lato (Lisboa/Porto), existe uma auto-estrada que, quer queiramos quer não, constitui um terrível concorrente do comboio nos dias de hoje, mas que perderá (?) parte da sua importância se o tempo de percurso ferroviário for substancialmente reduzido, digamos para menos de 2 horas. A questão que se levanta é a de saber se para conseguir este objectivo é indispensável construir o TGV de raiz. Julgamos que não. A solução que se nos afigura sensata, num país com escassez de recursos e enormes carências nos mais variados sectores da vida nacional (e sem entrar em consideração com a crise actual que é conjuntural, mas que se vai prolongar por alguns anos), será aproveitar o que temos, e introduzir no sistema as melhorias possíveis, abandonando a ideia megalómana de uma rede de alta velocidade, exigentíssima na óptica do investimento e problemática em termos de exploração económica rentável. É óbvio que não esquecemos a ligação à Europa, via Madrid ou outra alternativa que os espanhóis quiserem. Estamos a isso sentenciados por força das políticas de transportes da EU, que certamente se disporá a apoiar-nos com uma significativa participação financeira. Estamos “sentenciados” mas, é importante dizê-lo, temos interesse nisso, se queremos estar na Europa de corpo inteiro. Intra-muros, creio que nos bastará a melhoria da linha do Norte que tem muitos detractores, e melhorias nas outras ligações assumidas como importantes face ao tráfego previsível. Se já está concretizada a melhoria de 155 km da linha do Norte, e, em fins de 2006, mais 66 km estarão melhorados, atingindo-se, assim, 2/3 da sua extensão total, então o que se impõe é a melhoria dos restantes 105 km para que toda a linha fique em condições técnicas de permitir uma velocidade média de 200 km/hora, utilizando os comboios pendulares que estão subaproveitados, conduzindo-os a um desempenho que se traduzirá na realização do percurso Lisboa/Porto em menos de 2 horas. Esta melhoria far-se-á a um custo substancialmente inferior ao de uma linha integralmente nova e dentro de um horizonte temporal mais próximo.
7. E a Inglaterra? Como é que as coisas se passam na pátria dos caminhos-de-ferro? Pelo relatório da “Comission for Integrated Transport” (CIT), de 20-04-2005, ficámos a saber que a STRATEGIC RAIL AUTHORITY (SRA) está a planear lançar uma consulta para saber se uma linha de alta velocidade deveria ser construída para ligar Londres com o Norte da Inglaterra e a Escócia. O espírito subjacente a todo o relatório a que nos estamos reportando, é o de uma grande preocupação de não serem tomadas decisões que não estejam baseadas em sólida análise de custo-benefício. Não temos dúvida de que tal análise foi realizada em Portugal, mas mantemos a convicção de que é possível encontrar soluções alternativas, em particular no percurso Lisboa/Porto, em que as dificuldades de escolha de um traçado em área densamente povoada e as inerentes implicações ambientais são geradoras de grandes incertezas e incógnitas. Com efeito, os encargos com expropriações e indemnizações e outros imponderáveis, podem agravar, profundamente, as previsões do lado “dos custos”, e, obviamente, as conclusões das análises “custo-benefício”.
Resumindo
-a) Não parece justificar-se a construção, em Portugal, de uma “rede” de alta velocidade;
-b) A única linha TGV a construir em corredor inteiramente novo será aquela que não podemos evitar, e temos interesse em concretizar, passe a repetição, a ligação à Europa, isto é, a linha Lisboa/Madrid.
-c) A linha Lisboa/Porto poderá utilizar a via existente, devidamente melhorada, se quisermos fazer contas a sério.
-d) Deixemos para “segundas núpcias” uma “rede” de alta velocidade, se é que alguma vez viremos a reconhecer a sua necessidade...
8. Ouve-se e lê-se que o sector da construção virá a ser altamente beneficiado, e encontrará motivos de optimismo para a sua sobrevivência, em condições sustentáveis durante muitos anos. Não esqueçamos, porém, que o material circulante terá de ser importado na sua quase totalidade, se não mesmo na totalidade. Se queremos gastar bem, isto é, com o maior benefício para as populações, então não nos falta o que fazer na área das obras públicas, face às enormes carências de que o país sofre. Sem esgotar a matéria, e sem respeitar a hierarquia das necessidades e dos investimentos, parecem-nos de salientar os seguintes problemas: Energia: reduzir a factura energética na produção de hidroelectricidade (estão aproveitados cerca de 50% dos nossos recursos) e desenvolver as energias também renováveis (eólica, fotovoltaica, das marés, etc.); Agricultura: só a construção da totalidade da rede de rega do aproveitamento de fins múltiplos de Alqueva, em vez dos 20.000 hectares a cobrir, no horizonte da presente legislatura, absorverá recursos enormes e mão-de-obra avultada, dinamizando o regadio no Alentejo; Transportes públicos urbanos e suburbanos: investir fortemente; Estradas: com o crescimento do parque automóvel, não é possível abandonar quer a rede principal, quer a rede regional, e, talvez mais ainda, a rede municipal, onde as carências são gritantes; Saúde: há um mundo de coisas a fazer para suprir as deficiências, insuficiências e incapacidades das infra-estruturas da saúde (hospitais, centros de saúde, equipamentos técnicos vários, etc., etc.); Abastecimento de água às populações: estão resolvidos todos os problemas? Não será de começar a pensar na “dessalinização” da água do mar, em grande escala, face à “pressão” das sucessivas secas periódicas? Saneamento básico: a depuração das águas residuais, a despoluição dos cursos de água, o tratamento de resíduos sólidos urbanos e dos resíduos industriais perigosos estão longe, muito longe de estar resolvidos – lembremo-nos, por exemplo, da polémica da co-incineração que se arrasta há anos...; Etc..., etc... Não nos faltam problemas para resolver e para gastar dinheiro. O que pode faltar é... dinheiro.
9. Não foi por acaso que o Dr. Victor Constâncio, no 6.º Congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento do Caminho-de-ferro, se pronunciou sobre a “necessidade de assegurar a sustentabilidade económica do sector dos transportes”. Segundo o “Semanário Económico“ de 18-03-2005, o Governador do Banco de Portugal “...defendeu que o Estado não tem capacidade financeira para avançar com todos os projectos de transportes, como a conclusão do Plano Rodoviário Nacional, a implementação dos comboios de alta velocidade (TGV) e um novo aeroporto em Lisboa”. A bom entendedor... admitindo uma extrapolação para horizonte temporal mais alargado do que decorre da mencionada advertência que, eventualmente, terá um significado conjuntural!...
A - Em 1949, a extensão da rede atingia 3564 Kms, e hoje, mais de 50 anos decorridos, está reduzida a 2790 Kms, por força das várias desactivações das linhas secundárias sem rentabilidade. A extensão das linhas já electrificadas ronda os 1350 Kms, números redondos.
B - O PIB da vizinha Espanha atingiu, em 2002, 596 475 000 000 de US dólares, enquanto o de Portugal se ficou, no mesmo ano, pelos 109 114 000 000. 3 - Não foi por acaso que escolhemos estes quatro países para termo de comparação. É que o seu rendimento nacional per capita situa-se entre 2,5 vezes e 4 vezes o de Portugal

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